Geoevolução dos estuários do complexo Tejo/Sado
Geoevolução recente do estuário do Sado
|
Paleontologia e Arqueologia do estuário do Sado
O estuário do Sado integrou o estuário do Tejo até há dois milhões de anos, como atestam os vestígios paleontológicos comuns.
O mar ocupou periodicamente vastas áreas adjacentes durante a Era Paleozóica (iniciada há 2.500 milhões de anos), enquanto a Europa se separava da América e se consolidava o maciço vulcânico da margem Norte do Tejo. Abundam os fósseis de gastrópodes, moluscos e amonites desta época.
Na era Mesozóica (iniciada há 225 milhões de anos), a Península Ibérica encontrava-se coberta de lagos salgados e quentes e, no final, a África continuava a separar-se da América do Sul. No final desta Era, deu-se a extinção dos grandes sáurios, de que há vestígios na Arrábida. Os dinossáurios abundavam na região dos estuários do Sado e Tejo, atestando a existência de uma vegetação luxuriante.
Na Era Cenozóica (iniciada há 65 milhões de anos) houve importantes avanços e recuos do mar, relacionados com a actividade vulcânica e as glaciações que cobriram periodica-mente a Europa, com grande reflexo na formação das bacias hidrográficas e na erosão dos solos. Tubarões, mastodontes, crocodilos do Miocénico e elefantes do Pliocénico habitaram o estuário e zonas adjacentes.
No Miocénico Superior, iniciado há 10 milhões de anos, com a formação do maciço da Arrábida o Sado encurva-se para Oeste e separa-se definitivamente do Tejo.
Os estuários do Sado e Tejo não partilharam apenas a geologia e paleontologia, mas, devido à proximidade, também possuem vestígios arqueológicos de uma História comum que, por vezes, se confunde, devido, em parte, às vias fluviais que os unem, como a Cala Real, o rio Judeu e o rio Coina.
Hoje utiliza-se muito a expressão “Península de Setúbal” que se deve não só às razões geográficas como também às afinidades culturais e históricas. Esta península, desenhada pelos dois grandes estuários, do Tejo e do Sado, está hoje sujeita a uma forte pressão urbanística que ameaça os Parques e Reservas Naturais que a rodeiam.
A ocupação humana dos estuários do Tejo e Sado remonta ao Paleolítico, como se vê nas estações da Base Aérea do Montijo, Cascalheira e no Alto da Pacheca, em Alcochete. Os concheiros mesolíticos de Muge, assim chamados por serem estações que apresentam grandes depósitos de conchas, estão entre os mais importantes do mundo, com um registo de mais de trezentos esqueletos de há 6.000 anos, alguns em bom estado.
Eram populações já sedentarizadas, com práticas sociais e funerárias.
Há vestígios do Paleolítico na margem Norte do estuário do Sado, e do Neolítico na margem Sul, nas jazidas do Celeiro Velho, Malhada Alta, Possanco, Pontal Barrosinha e Sapalinho; na margem Norte, na Rua General Daniel de Sousa / Rua Frei António das Chagas (Setúbal), na Mitrena e no Faralhão.
Da cultura Megalítica, que se julga ter aparecido na Península Ibérica, difundindo-se depois por toda a Europa, há que referir as grutas artificiais, escavadas durante o Calcolítico, de que são exemplo as Grutas da Quinta do Anjo, em Palmela, bem como a Anta de Canha.
As características naturais do estuário eram então muito diferentes, sem o cordão dunar de Tróia, que era uma ilha, e a zona da Comporta integrada num sistema lagunar aberto ao mar, o que lhe conferia condições particulares de produtividade piscícola.
Estas extraordinárias condições estuarinas permitiram, por todo o lado, a revolução agrícola e a pri-meira Grande Vaga Civilizacional com a progressiva sedentarização e crescimento demográfico, basea-do fundamentalmente numa economia de pesca/recolecção, complementada com a agricultura e a criação de gado, já então praticadas.
As jazidas neolíticas desta zona (Celeiro Velho, Malhada Alta, Possanco, Pontal, Barrosinha e Sapalinho) revelam níveis de concheiro e artefactos que permitem estabelecer a evolução desde a primeira fixação humana na zona (Pontal), até ao início da Idade do Bronze, altura em que se processou o desenvolvimento da agro-pastorícia e do comércio. A generalização da guerra, que obrigou as populações do Calcolítico a trocarem os locais baixos por zonas elevadas com boas condições naturais de defesa, poderá estar na origem do abandono da zona por parte de grupos humanos, implicando a falta de vestígios arqueológicos posteriores.
|
Na Idade do Ferro, introduzida na Península pelos Fenícios, o estuário teve o seu primeiro porto oceânico na feitoria de Abul, que foi um importante de entreposto comercial, fruto da intensificação das transacções comerciais encetadas pelos povos mediterrânicos.
A esta época são atribuídos os vestígios da ocupação do cerro do castelo de Alcácer do Sal, fruto da generalização do clima de guerra e das condições de defesa dessa zona.
A posterior ocupação romana veio trazer um desenvolvimento sustentado durante muitos séculos, com uma produção agrícola e piscícola sob a forma de conservas, onde se salienta o garum, produto muito apreciado pelos Romanos, composto de restos de peixe, ovas, sangue, mariscos e moluscos macerados em sal, a que se adicionavam molhos que lhe conferiam uma vasta gama de variedades, sendo depois embalados em ânforas e exportados para os centros de consumo do Império.
A estação arqueológica de Tróia é a mais importante jazida da ocupação romana no estuário, com um importante centro fabril de conservas de peixe, ocupando uma faixa de mais de 2 ha com zonas habitacionais, balneários, três zonas de enterramento e um núcleo religioso.
Desconhece-se a origem do nome. Tróia era uma ilha do delta do Sado, denominada de Ilha de Acála (conforme o refere Avieno). As primeiras referências às ruínas romanas de Tróia datam de 1516, referindo Gaspar Barreiros as “…salgadeiras em que se curava o peixe…”.
Uma parte destas ruínas está submersa, devido à erosão dunar e às correntes de maré.
A preferência pela fixação das tribos primitivas nas margens dos rios deveu-se ao acesso directo à água, para a alimentação, para a agricultura e para a pesca como complemento proteico da caça e da pastorícia.
Essas tribos começaram a aproveitar os recursos hídricos muito cedo, assim como a navegar neles para as suas transacções.
Os primeiros barcos terão sido troncos de árvores flutuantes aos quais se agarravam, depois fizeram pirogas e, primeiro com as mãos, depois com outros instrumentos, aprenderam a impulsioná-las e a utilizar o vento, aventurando-se mais tarde no mar.
|
Barco comercial fenício. Recriação do autor, a partir de uma fotografia sua, de um baixorelevo egípcio de cerca de 1400 a.C., do túmulo de Kenamon, em Tebas, que mostra barcos fenícios descarregando num porto Egípcio.
|
Os estuários foram o local privilegiado de fixação das populações, formando verdadeiros centros comerciais procurados pelos navios que atravessavam todo o Mediterrâneo para as trocas comerciais, enquanto difundiam modos civilizacionais a que, mais tarde, os historiadores chamaram de Mediterranização.
Foi há 3.100 anos que apareceram os primeiros vestígios de Fenícios nas regiões costeiras da Península Ibérica, provenientes do outro lado do Mediterrâneo, em navios que chegaram a atingir os 30 metros de comprimento.
Vinham em busca de ouro, cobre e ferro, cuja idade iniciaram na Península.
Os estaleiros navais de Sídon e Tiro construíam os melhores navios da época, com os famosos cedros do Líbano, que ultrapassavam os 30 metros.
Esta famosa madeira, de grande resistência e elasticidade, permitia construir grandes navios para o mar, sem necessidade de recorrer a numerosas articulações que os fragilizassem.
A sua utilização possibiltou o comércio marítimo que os Fenícios tão bem souberam aproveitar. A barca funerária de Keops, no III milénio a.C., exposta no Museu das Pirâmides, no Cairo, foi feita com esta preciosa madeira.
Apesar de sabermos que a sua finalidade era apenas ritual, não deixa de nos impressionar pelas dimensões e qualidade da madeira com que foi construída, há cinco milénios.
|
Barca de Keops existente no museu das pirâmides.
|
Os faraós egípcios encomendavam, aos Fenícios, barcos e até expedições, como as que se fizeram à região do Punt (Somália), sendo a mais famosa a da rainha Hatchepsut, no XV.º século AC, documentada no seu templo funerário, e mais tarde a circum-navegação da África por Necho II, no século VII AC.
Os Gregos antigos tiveram, provavelmente na foz do Sado, um posto de comércio durante algum tempo, mas os seus conflitos com os Cartagineses, por todo o Mediterrâneo, levaram sem dúvida ao abandono, devido ao maior poderio de Cartago, nessa época.
A estação arqueológica de Abul comprova a estadia fenícia. Aqui existiu uma feitoria e foi certamente o primeiro porto oceânico da Costa Oeste da Europa que comerciou com o Mediterrâneo.
Seguiu-se depois o período Romano, entre o século III AC e VII DC, com a fundação de um império poderoso, baseado na força bélica, que colonizou grande parte da Europa e todo o Mediterrâneo. O seu poderio naval destruiu toda a resistência fenícia. Foram construídas pontes e estradas que permitiam o acesso rápido a todos os pontos do império, e uma força naval armada que protegia o intenso comércio marítimo, de uma pirataria sempre presente.
O Sado, que serviu de via de penetração até ao interior, é então uma via romana e acaba por ter um papel importante na estruturação territorial da Península Ibérica. Foi também um pólo de desenvolvimento, determinando a localização de diversos aglomerados, permitindo, ao longo dos séculos, a ligação do litoral ao interior, o alargamento da economia e a consolidação territorial.
As estações arqueológicas de Tróia, Cetóbriga e Abul, com os seus portos, atestam a importância do comércio desta época.
As salinas marginais permitiram a indústria do pescado e a sua exportação para lugares longínquos. Os vestígios arqueológicos dão-nos uma imagem do que deveria ser a especialização funcional das margens do estuário, com ânforas a serem produzidas nas instalações da Herdade do Pinheiro, Abul e Cetóbriga. Durante o Império Romano, constroem-se portos para a navegação entre as principais cidades, como complemento das vias romanas, formando uma bacia económica que atravessava todo o Alentejo até ao Algarve.
Pelo Sado eram escoadas as pirites alentejanas, para a florescente Idade do Ferro mediterrânica; o sal e o pescado, sob a forma de conservas, possibilitavam navegações mais arrojadas, assim como os cereais das férteis planícies.
As posteriores invasões germânicas enfraqueceram as defesas locais e abriram as portas à arabização proveniente do Magreb, que, em três anos, cobriu quase toda a Península, no século VIII. Depois de quatro séculos de coabitação pacífica, inicia-se a Reconquista cristã que, na Península, durou quase três séculos, para se concluir em finais do século XV.
No Baixo Sado era de salientar a navegabilidade até Alcácer do Sal, verdadeira praça-forte, que viria a atingir grande pujança no período do domínio árabe.
Com o império muçulmano, séculos VII-XII, continuaram as obras de regularização do rio, o aproveitamento energético por moinhos e fortificaram-se as cidades ribeirinhas contra os frequentes ataques inimigos, onde Alcácer do Sal, Setúbal e Sesimbra dominavam.
No século XII, com a Reconquista cristã, são reforçadas as fortificações das cidades fluviais, para impedir a cobiça do país vizinho e a reconquista árabe.
No primeiro milénio da Era Cristã, a colonização romana deixou-nos uma rede de estradas, uma cultura, uma língua, o Direito romano e o sonho imperial, mas foram os Árabes que legaram um avançado conhecimento científico de Medicina, Cartografia e Astronomia que possibilitou os Descobrimentos.
Os Árabes foram um povo de charneira entre o Oriente e o Ocidente. Tinham desenvolvido um comércio intenso, levando artefactos e tecnologias de um lado para o outro, ao mesmo tempo que desenvolviam, no seu seio, um conhecimento científico pragmático, menos filosófico que o dos seus antecessores Gregos e Romanos, e mais tecnológico, como a Química, Medicina, Astronomia, Cartografia e Náutica, que lhes permitiu uma supremacia económica no Mediterrâneo e no Índico, até à chegada dos Portugueses, no século XV.
Este conhecimento científico foi aproveitado pelos portugueses nas Descobertas, tornando-se o estuário do Sado, apesar de secundarizado pelo do Tejo, o epicentro do império colonial que se criou.
O ideário cristão que levou ao fim da coabitação pacífica entre as duas religiões também norteou os Descobrimentos dos dois povos peninsulares que, a certa altura, partilharam o Mundo entre os dois maiores impérios coloniais de sempre, tendo o porto de Setúbal um papel importante.
D. João II, que preparou a descoberta do caminho marítimo para a Índia e desprezou as ideias lunáticas de Colombo, não chegou a assistir ao resultado dos seus preparativos.
A navegação para além dos limites estuarinos, em Alcácer do Sal, só é possível até Porto do Rei, 16 milhas a montante.
O Estuário do Sado manteve-se sempre navegável e foi o principal factor de desenvolvi-mento das zonas ribeirinhas.
O seu ecossistema integra um enorme viveiro de peixes, crustáceos e moluscos que contribuem para a renovação piscícola da costa.
As ostras, desaparecidas do Tejo devido à poluição, ainda se encontram no estuário do Sado e foram daqui exportadas para toda a Europa, desde tempos imemoriais. No seu extenso sapal, procuram alimento muitos milhares de aves migratórias e residentes.
No século XV, é nos estuários do Tejo e do Sado que se inicia a Terceira e Última Grande Vaga Civilizacional e a Península de Setúbal veio a tornar--se numa das zonas mais industriais do país.
|